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segunda-feira, 3 de abril de 2017

A poética de Manoel de Barros e os desperdícios de infância


"Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande." Manuel de Barros.

Embriagados pela obra de Manoel de Barros e pelas singelezas das (des)escritas de quem se pretende apanhador de desperdícios, nós também, como arautos de coisas puras e simples, procuramos escarafunchar os espaços de sociabilidade por onde passam as nossas crianças. Também nós já fomos crianças e, ao lermos os fragmentos poéticos desse homem que diz ter uma dor de árvore em seu morrer, recebemos essas mensagens como sacudidelas das mãos do poeta, com gosto de infância e cheiro de terreiro de quem traz encrustadas na alma as lembranças do menino pantaneiro. Com sabor de saudade, os versos desse menino crescido nos tocam e, ao saboreá-los, indagamos sobre como acontece e em quais espaços de convivência está circunscrita a criança dos tempos atuais. A espasmódica resposta, como velha conhecida nossa, nos incomoda. A lúgubre resposta sabida surge como algo que não deveria ser, como um soco “na boca do estômago”: a criança de hoje se encontra em entre lugares. Em toda parte e em lugar nenhum. Muitas, perdidas e à cata de achadouros.

Ao contrário de parte da infância, sem culpa, de nossa modernidade líquida, ao rememorar experiências que lhe foram narradas pela negra Pombada – descendente de escravos do Recife, como ele insiste em nos lembrar – o poeta nos diz que os achadouros eram buracos feitos por holandeses nos quintais de suas residências quando da sua retirada do Brasil. Tais buracos tinham como objetivo guardar os tesouros dos estrangeiros que aqui residiam. A partir dessas lembranças, ele indaga o que seria, em sua leitura lírica da vida das crianças, os achadouros de infância. Aqui, importa-nos problematizar, antes de qualquer outro devaneio, os encontros geracionais (entre o menino Manoel e Pombada – mulher adulta que lhe narra tais experiências). Dito de outra maneira, importa-nos o reconhecimento da forma como as experiências de crianças e adultos historicamente se entrecruzam para a transformação de ambos.

Sozinhas ou em grupos, as crianças instituem, desinstituem, reinstituem, vertem, revertem, subvertem, produzem e reproduzem a cultura social. Isso consta nos escritos de um amplo grupo de teóricos das ciências sociais e humanas da atualidade. Para muitos, o modo singular das crianças ocuparem o mundo é evidenciado em formas de tratados e pesquisas. Assim, achadouros de infância eram (e ainda podem ser compreendidos como) todas as descobertas que as crianças realizavam e continuam realizando quando se relacionam entre si, e na interação com os adultos, com a cultura, com a natureza. Esse modo tão criança de ser, com capacidade de tentar pegar o rabo do vento, recebe, na contemporaneidade, diversas nomenclaturas: culturas da infância, cultura de pares ou cultura infantil, dentre outras tentativas de conceituação da experiência social de meninos e meninas. Todas essas formas conceituais são unânimes em evidenciar a capacidade das crianças de perceberem o mundo natural e social em seu entorno e de se relacionarem com ele. Nesse movimento, as crianças nos informam suas experiências por diversas vias – e não somente pela linguagem oral – com a destreza de quem “não gosta de palavras fatigadas de informar”.

Manoel de Barros, com perspicácia, sabedoria e sensibilidade de quem se capacitou para narrar a vida de meninos e meninas pelas lentes da poesia, percebe nas crianças a potencialidade de fazerem o verbo se desgarrar da lógica, num misto de criatividade, ludicidade e mimese que habilita o poeta pegar delírio, pois


"No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio" (Manoel de Barros)


De modo delirante, mas com um misto de inocência e bravura, de quem possui a capacidade de desconstruir os verbos para se fazer entender – como quem brinca com a linguagem (e com a cultura) – a criança projeta-se no mundo simbólico para permitir que sua experiência seja lida pelo outro – num simples e fascinante exercício de alteridade. Desse modo, é possível compreender os achadouros de infâncias como as descobertas culturais que as crianças realizam na interação com o mundo (natural e social, tanto em seus aspectos materiais e simbólicos). Ou numa lógica menos matizada por abstrações, é possível, ainda, compreender esses achadouros como a capacidade dos adultos “lerem” – como quem lê uma poesia – as narrativas das crianças. Ou seja, os achadouros de infâncias surgem quando os adultos aprendem com as crianças, com as suas experiências e com o seu linguajar as formas de redesenhar o mundo de maneira simples. Portanto, os achadouros são, por parte dos adultos, a possibilidade da descoberta de grandes tesouros escondidos na criança – por vezes, na própria criança que eles foram um dia.

Outra maneira de compreender e dar sentido aos achadouros de infâncias encontra-se nos espaços de sociabilidade e de convívio de crianças – que têm sofrido, na contemporaneidade, transformações radicais e aligeiradas em suas formas de vida e de interlocução com a cultura – basta ver os modos precoces de interação com as tecnologias e com o mundo virtual. Quando, há bem pouco tempo, os achadouros de crianças estavam espalhados pelos quintais, pelas ruas, pelas ladeiras, pelos becos, pelas estradas de terra batida – com carrinhos de rolimãs morro abaixo, com papagaios de fabricação caseira, bailando acima das cabeças encantadas que miravam ao longe infinitas possibilidades. Esses achadouros seguiam pelas praças, pelo pomar, saltavam poças de água da chuva, fornecendo multifacetadas formas de conceber o mundo e a vida. Dessa maneira, os quintais – todos eles – eram maiores, muito maiores do que a nossa “vã filosofia” poderia sonhar. Neles, haviam tesouros e segredos escondidos por toda parte. Todavia, esses quintais não poderiam ser maiores do que a cidade – essa, para as crianças de outrora, traduzia a clara representação grotesca do incognoscível. Os quintais, ah, os quintais...!, se constituíam territórios conhecidos e seguros, extensão da própria imaginação.

Na atualidade, os espaços de sociabilidade infantil têm diminuído. Uma grande parcela de crianças não ocupa mais os espaços públicos. Em comparação com outros tempos (até recentes), é insignificante o número de meninos e meninas nas brincadeiras de rua – em razão, dentre outros fatores, da violência e de tudo o que afeta a vida contemporânea. Ocorrências inomináveis que, mais cedo ou mais tarde, nos pegam a todos com mais ou menos intensidade. Brincar tornou-se perigoso? O melhor é deixar os achadouros serem desvelados pela tela da televisão e do computador? O melhor é esconder-se por detrás dos aparelhos eletrônicos ou da telinha do celular? Não há mais necessidade de tocar a terra com os pés, com as mãos, com os sonhos? Parece desimportante deixar o tesouro escondido onde ele se encontra. As telinhas – sejam quais forem – cumprem os papéis de desvendar os mundos, de reconfigurar os sonhos e de obscurecer nossas potencialidades de comunhão direta com a alteridade. Os quintais – quando existem – tornam-se cada vez menores e muito mais enigmáticos. Quando ainda estão lá, aos olhos de muitas crianças, transformam-se em espaços insondáveis, amorfos, de onde não brota vida.

Ainda assim, como propagadores da esperança, não perdemos a crença de que os tesouros escondidos nos achadouros ainda se encontram em espaços de socialização infantil. Mesmo que as mudanças radicais ocorridas nesses tempos confusos queiram trancafiar a vida. Elas (a vida e a infância) ainda pulsam em quintais desabitados de fantasias e sonhos, e...


"Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa" (Manoel de Barros).


Se cavarmos um buraco até o mouse de um computador, lá estará um guri a clicar pelo cyberespaço; se cavarmos até um smartphone, lá estará um guri a dominar um novo aplicativo ou em busca de pokémons. Lá estará um guri morrendo, aos nove anos, afogado no rio, em busca de bichinhos virtuais. Meio sem graça essa nova realidade, não? O que nos importa? O que nos interessa? De alguma forma, as crianças continuam a reconfigurar os seus achadouros.

Afinal, nos constituímos na e pela palavra e, com a mesma inteireza de criança que aplica o verbo escutar à cor dos pássaros, tentamos, ao nosso modo, fazer o verbo esperançar pegar delírio e habitar, de novo, entre nós.
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Texto: ¹Sandro Santos e ²Joaquim Ramos
¹Doutor em Educação pela FaE/UFMG.
²Professor da rede estadual (afastado) e municipal. Estudante de doutorado da Faculdade de Educação/FaE/UFMG.
Foto: Poeta Manoel de Barros / Divulgação

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